Richard Wagner: Hipermídia em 1876

Richard Wagner: Hipermídia em 1876
ou Um pouco sobre o homem que fazia antes o que foi inventado depois

Criado por Ted Nelson na década de 1960, o conceito de hipermídia compreende a reunião de várias mídias em um suporte computacional (HIPERMÍDIA, 2006), constituídas por pequenos blocos de informação, denominados lexias ou nós, e que se comunicam através de links não-linearmente (LEÃO, 1999). Ao propor que a World Wide Web interligasse computadores através de um modelo gráfico, Tim Berners-Lee ampliou consideravelmente o campo da hipermídia e a popularizou, o que, muito erroneamente, faz a algumas pessoas crer que ela se resume exclusivamente à web ou, ainda, que é estritamente textual. Porém, para Lucia Santaella (2001, p. 392), “a hipermídia significa uma síntese inaudita das matrizes da linguagem e pensamento sonoro, visual e verbal com todos os seus desdobramentos e misturas possíveis”.

É justo lembrar que a hipermídia não surgiu com Ted Nelson: sendo ela a união de diversos meios através de uma estrutura não-linear, podemos pressupor a existência anterior da multimídia, sem a qual a hipermídia não existiria.

O teatro grego, que conjugava música e literatura, é a forma mais antiga de união com êxito entre diversas formas de arte que conhecemos hoje. Com a ruptura do mundo greco-romano e a consolidação do domínio cristão sobre o Ocidente, a arte dos antigos, a partir de então considerada herege, foi esquecida e só não sumiu completamente graças à manutenção do Império Bizantino. Um dos principais exemplos dessa nova abordagem foi a proibição, por parte da Igreja, do uso de instrumentos musicais nos cantos da liturgia católica – a música “oficial” – e que perdurou por centenas de anos, sob a alegação de que o único instrumento musical criado por Deus é a voz humana, sendo todos os demais instrumentos pagãos. Outro pensamento comum na época é o de que as harmonias da música polifônica seriam obra demoníaca, fato que levou o papa João XXII a banir esse tipo de música em 1322. O resultado dessa proibição é uma música plana que chamamos cantochão, cuja variante principal é o canto gregoriano.

Pouco a pouco, as restrições eclesiásticas foram sendo vencidas, incorporando na música litúrgica as características da música secular, que sempre se manteve alheia às decisões papais. Por essa época, o mundo vivia um período conhecido por Renascimento, focado no ser humano e não em Deus, e caracterizado pela busca e valorização de temas greco-romanos, ou seja, pela tradição secular/pagã. É nesse ambiente que surge a ópera, uma tentativa de resgate do antigo teatro grego, fruto de intensos debates entre intelectuais da época, dentre os quais Vincenzo Galilei, pai do matemático e astrônomo Galileu Galilei. Consta que as primeiras óperas foram Dafne (1597) e Eurídice (1600), de Jacopo Peri, sendo que a primeira não chegou intacta até nós, e a segunda uma versão de pouco valor, senão histórico. Consolidando a forma e realizando várias inovações, Claudio Monteverdi escreve La Favola d’Orfeo (A fábula de Orfeu, 1607), uma das maiores obras-primas da história da Música.

No início do século XIX, 200 anos depois do sublime Orfeu, a ópera estava tomada por apresentações espetaculosas mas vazias, clichês musicais e lirismo exagerado. Era a grand opera française, cujo maior representante foi Jakob Meyerbeer. Contra esta corrente surge, na Alemanha, o compositor Richard Wagner.

Wilhelm Richard Wagner nasceu em Leipzig em 1813. Foi um profundo admirador da literatura, tendo, aos 13 anos de idade, traduzido os 12 primeiros volumes da Odisséia de Homero diretamente do grego. Interessou-se pela música apenas mais tarde, após ouvir Beethoven. Assim, decidiu conciliar suas duas maiores paixões. Suas primeiras óperas foram em estilo convencional, todas com libreto escrito por ele mesmo, fato esse que se repetiria até o fim de sua vida.

Exilado em Zurique, Suíça, após participar de uma revoluç&atil
de;o fracassada em Dresden, escreveu A obra de arte do futuro (1849), onde define os conceitos de gesamtkunstwerk, ou obra de arte total. Nestes escritos, rejeita a ópera lírica, considerada superficial, um mero espetáculo para divas e tenores (PACKER e JORDAN, 2001). Diz que “a maior obra de arte conjunta é o Drama” (WAGNER, 1849) e cita as artes que devem acompanhá-lo: a arquitetura, para a montagem de um teatro acessível visualmente a todos, em que nenhuma parte da cena seja perdida, e no qual a imersão ocorra (Wagner foi o criador do fosso, o espaço sob o palco onde a orquestra se esconde, gerando um efeito que ele chamou de “abismo místico”, e o primeiro a diminuir drasticamente a iluminação da platéia durante a apresentação); a pintura de paisagens, para uma cenografia perfeita; a atuação; a dança; a fala; a poesia; a música. O resultado final deve ser uma peça extremamente realista. Não uma ópera, mas sim um “drama musical”.

Entre 1848 e 1874 escreveu sua obra-prima, a tetralogia Der Ring des Nibelungen (O anel dos nibelungos), composta por O ouro do Reno, As Valquírias, Siegfried e Crepúsculo dos deuses. É uma peça que dura de 14 a 18 horas, o que nos leva a pensar: como pode se manter a unidade e coerência em um conjunto de óperas tão grande? Wagner solucionou esse problema criando o leitmotiv, motivo carregador. O leitmotiv é um trecho sonoro (uma melodia, um ritmo, um certo grupo de instrumentos) vinculado a um personagem, objeto ou ação recorrente. Sendo assim, temos leitmotive de uma mocinha ou de um vilão, de vários objetos e lugares, etc. Mas não é tão simples quanto parece: Wagner faz um complexo jogo de sons de acordo com o que acontece em cena. Por exemplo, quando determinado personagem aparece, surge seu tema; mas quando este personagem se associa a outro, os dois temas são tocados. Em alguns momentos, o tema é tocado sem o personagem ou objeto estar em cena, indicando que ele se aproxima ou fazendo uma referência a ele. Os leitmotive são variáveis: soa glorioso num momento de júbilo, mas transfigura-se num motivo sombrio durante uma cena trágica. A complexidade é tal que, em algumas cenas, para simbolizar a inversão de algum fato, uma perda ou evento similar, o próprio leitmotiv é tocado de forma inversa.

É inegável a semelhança entre o leitmotiv e a lexia: ambos são trechos de informação que, ao estabelecerem várias conexões (actemas), formam um conjunto coerente (episódio) (LEÃO, 1999).

Em meados do século XIX, quando Wagner propôs sua arte do futuro, não havia um único teatro em toda a Europa capaz de suportá-la. Com a ajuda do Rei Luís II da Baviera, do Kaiser Guilherme da Prússia, do Imperador Pedro II do Brasil, de sociedades wagnerianas e com o dinheiro arrecadado em concertos, construiu o Teatro de Bayreuth, na cidadezinha de mesmo nome, seguindo o modelo dos antigos teatros gregos, em semicírculo, para que os espectadores estivessem sempre de frente para o palco. Fundava, assim, o teatro de ópera moderno, em que a imersão é plena. Pôde, finalmente, estrear O Anel dos Nibelungos em 1876, reapresentado desde então quase todo ano no Bayreuther Festspiele – o Festival Anual de Bayreuth.

O legado que deixou foi tão grande que, entre os compositores da segunda metade do século XIX, havia os wagnerianos e os não-wagnerianos. Ademais, é tido como o “inventor da música de cinema”, mesmo tendo morrido antes de sua criação (sua marca na sétima arte é ainda maior, já que as salas escuras dos cinemas são intensamente baseadas no Festspielhaus). Sua obra inspirou músicos, escritores, filósofos, roteiristas e desenhistas. Richard Wagner morreu em Veneza em 1883, mas sua obra, à frente daquele tempo, parece até mesmo à frente do nosso.

Festspielhaus
Mapa de assentos do Teatro de Bayreuth
Fonte: <http://www.digischool.nl/>

Referências

BIOGRAFIAS de compositores de música clássica. Wagner. Disponível em:
<http://paginas.terra.com.br/arte/compositores/wagner.html>. Acesso em: 6 jun 2006.

CROSS, Milton. O livro de ouro da ópera: as obras-primas do teatro lírico explicadas e ilustradas. Rio de Janeiro, Ediouro, 2002. Trad. Edgard de Brito Chaves Junior.

GIRON, Luís Antônio. Lanterna mágica em Bayreuth. Disponível em: <http://www.geocities.com/Vienna/8179/wagner.html>. Acesso em: 9 jun 2007.

HIPERMÍDIA. Wikipédia: A enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Hipermídia>. Acesso em: 6 jun 2006.

LEÃO, Lucia. O labirinto da hipermídia: arquitetura e navegação no ciberespaço. São Paulo, Iluminuras – FAPESP, 1999.

PACKER, Randall e JORDAN, Ken. Multimedia: from Wagner to virtual reality. Nova Iorque, W.W. Norton, 2001.

RICHARD WAGNER. Wikipédia: A enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Richard%20Wagner>. Acesso em: 6 jun 2006.

SANTAELLA, Lucia. Matrizes da linguagem e pensamento: sonora, visual e verbal. São Paulo, Iluminuras, 2001.

WAGNER, Richard. Das Kunstwerk der Zukunft. Zurique, 1849


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