Nas últimas semanas li o o livro Cultura da Interface, do Steven Johnson. Apesar de um pouco desatualizado para o tema – o livro é de 1997 – ele traz uma parte histórica muito importante. A leitura foi feita para um trabalho, e o resultado foi publicado aqui no And After: Resenha crítica do livro "Cultura da Interface".
E o que essa história toda tem a ver com a ainda dominação do Internet Explorer no mercado? Bem, vamos lá…
Como eu disse em minha resenha:
[…] é como estudar com um pouco mais de profundidade a história de seu país, estado, cidade – conhecendo o passado você começa a compreender melhor o presente […]
Então para entender o porque das coisas serem como são hoje, é preciso voltar um pouco no tempo. Vou transcrever uma das partes do livro que mais me chamou atenção sobre o tema:
Para fins de clareza, vamos considerar a seguinte situação hipotética: é início de setembro num ano de eleições apenas para o Congresso. O Washington Post está intensificando sua cobertura da acirrada disputa de uma cadeira no Senado pela Virgínia entre um membro da casa com ligações de longa data com o establishment do Washington e um novato brigão, com pouca gente a seu serviço mas cheio de fervor. Nos últimos dois meses, o Post manteve a história em banho-maria, com erupções ocasionais e a ocasional manifestação de preferência por um dos dois candidatos. Há outras disputas a cobrir, claro, mas a história promete ser um tópico regular de primeira página nos próximos meses – e provavelmente manchete, no dia da eleição.
Então, de repente, o Post anuncia uma oferta especial para seus leitores: se prometerem votar no senador que pretende reeleição, receberão o jornal de graça na porta de casa pelo resto do ano. Isso mesmo – de graça. Free. Grátis. Libre. Service compris. O adversário novato grita que isso é desonesto, contrata uns tanto juristas constitucionais – e se põe imediatamente a fazer acertos com outros jornais locais.
Parece espantoso? Devia. Implausível? Nem tanto. Um deslize comparável na ética jornalística aconteceu no outono de 1996. Nesse caso, porém, a indiferença pública à transgressão foi mais clamorosa, e mais deprimente que o próprio crime. Os verdadeiros culpados não eram os figurões inchados, mamados da alta sociedade de Beltway, mas as estrelas florescentes da era digital: os infomagnatas da Costa Oeste e seus cronistas da imprensa de negócios. E tudo girou em torno de uma janela de computador aparentemente inofensiva.
Aqui vai a verdadeira história. Em agosto de 1996, depois de uma longa e frustrante batalha contra a Netscape, a Microsoft anunciou um ambicioso plano para vincular seu navegador Web a certos "provedores de conteúdo", seguindo o preceito de praxe para as empresas no final da década de 1990: se não puder copiar os outros, promova a sinergia de seu produto com outros produtos até matá-lo. Enquanto isso os web masters do Dow Jones haviam decidido que era hora de as pessoas começarem a pôr a mão no bolso para ler a edição interativa do Wall Street Journal. O credo libertário – "a informação quer ser livre" – podia valer sob o grande céu de Montana, mas experimente pregá-lo para os corretores da bolsa.
Por isso a sinergia. o Journal estava procurando uma maneira de erguer barricadas sem alijar por completo uma população on-line acostumada a sites livres na Web. A Microsoft queria uma maneira de diferenciar seu navegador do produto concorrente, um "valor adicional" que teria mais a ver com a informação transmitida pelo navegador do que com as características reais deste. É um filme que todo economista sabe de cor. É possível ver a mesma lógica em funcionamento nas cadeias de fast-food toda vez que o hamburger vem numa caixa reluzente embelezada com o último cartum canônico de Disney. (Até os "provedores de alimentos" têm de servir uma pitada de conteúdo vez por outra.)
Assim, no dia 13 de agosto, a Microsoft e o Journal anunciaram um acordo mediante o qual os usuários do Internet Explorer da Microsoft seriam recebidos de braços abertos no site do Journal, enquanto o resto da comunidade on-line faria fila diante da bilheteria para morrer numa anuidade de 29 dólares. O portal principal para a presença on-line do Journal logo passou a exibir um decorativo ícone "Download Internet Explorer", acompanhado da logomarca da Microsoft. Numa página austera sob todos os demais aspectos, baseada em texto, o ícone mais parecia Super Mario colado num documento de Ken Burns. Decisões estéticas como essa poderiam parecer esotéricas, mas é bom lembrar: até hoje o Journal se recusa a estampar fotografias em suas páginas impressas.
A primeira vista, o arranjo não parece equivalente a fraudar uma eleição federal. Em outra indústria, a analogia poderia ser exagerada. Mas consideramos o contexto mais amplo da história e os jogadores envolvidos. O Journal é o órgão oficial do empresariado dos EUA, assim como o Post comanda a cobertura política na área da capital federal, se não em toda a nação. E no mundo segundo o Wall Street Journal, por volta de 1996, não havia nenhum assunto mais interessante e relevante que a aventura da Microsoft em busca da conquista da Internet. Era, inegavelmente, uma história formidável, muito mais impressionante que a sovada disputa por uma cadeira no Senado pela Virgínia, uma espécie de Fausto para o analista financeiro: o combalido gigante da era da informação, suplantado pelas próprias forças tecnológicas que desencadeara no mundo, lutando para recuperar o domínio sobre sua indústria. E nos muitos regatos de estratégia e circunstância que contribuem para o fluxo principal dessa história, não há nenhuma corrente mais forte que as guerras dos navegadores para a Web.
[…] Durante a maior parte de 1996, o produto Navigator, da Netscape, havia dominado o mercado de navegadores, posição que já se transformara em vários bilhões de dólares desde que, em novembro de 1995, a Netscape apresentara a mais bem-sucedida oferta pública inicial de Wall Street. Mas a Microsoft vinha promovendo seu Internet Explorer ferozmente naqueles últimos meses e ameaçava incorporá-lo ao ambiente básico do seu sistema operacional Windows 98.
[…] É nesse ponto que as questões éticas vão além dos costumeiros textos manuscritos sobre sinergia empresarial e conexões entre produtos. Trocando em miúdos, o Journal declarava fornecer um relato objetivo de eventos do mundo da alta tecnologia, e no entento se propunha a abrir mão das anuidades dos leitores dispostos a alterar esses mesmos eventos dando preferência ao produto da Microsoft sobre o da Netscape. Dado o número de leitores do Journal que tinham acesso à Web, e a popularidade do site do Journal, não há a menor dúvida de que a parceria fomentava a participação do navegador Explorer no mercado em detrimento da do Navigator. Na verdade o Journal estava dizendo: somos uma fonte confiável para cobrir a disputa entre a Microsoft e a Netscape, mas basta você dar seu voto para a Microsoft e não precisa mais se dar ao incômodo de pagar a sua assinatura. Era uma violação clara de ética jornalística, e no entanto o caso passou quase despercebido.
(Trecho extraído do livro Cultura da Interface – Como o computador transforma nossa maneira de criar e comunicar. JOHNSON, Steven – 1997, p. 74-76)
Como complemento e dica, quem ainda não viu o primeiro episódio do documentário Internet da Discovery que foi disponibilizado no site, segue o vídeo 😉
Deixe um comentário